sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

A Rita Schmidt, Rosane Salomoni e Márcia Navarro

Maputo, 06 de janeiro de 2009.


Ah! Que saudades da minha terra, onde canta o sabiá. E o pintassilgo, e o bem-te-vi, e o exótico alma-de-gato (que vocês chamam de rabo-de-palha). Por aqui, as únicas aves constantes são os corvos agourentos, cujo canto permanentemente me atordoa. Parece que eles me perseguem pela cidade, mas felizmente são as garças que musicam a chegada da morte em Maputo, Gaza e Matola, ou em qualquer outro recanto deste país que parece ter sido esquecido pelo resto do mundo. No continente negro, é o branco que prenuncia a morte e a destruição. Compreensível, se pensarmos no estrago que os povos brancos de Europa realizaram nas terras das gentes negras. Ou nos estragos que alguns povos brancos da América continuam a realizarne no coração sangrento deste continente. The Constant Gardner é mais real do que eu quis acreditar, sou obrigado a admitir.

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Já me encontro em solo moçambicano, instalado no Sundown Guest House, recomendado pelo Zander. Todos os brasileiros com quem cruzei por aqui até agora dizem que, no máximo, vou ensinar gauchês no ISCTEM (que os moçambicanos pronunciam "isch-k-têmã"). Até para os gaúchos que aqui se encontram meu sotaque é carregado demais. Tanto que tenho de arremedar um leve sotaque lusitano para ser compreendido: sinto-me a falar português a estes gajos como se esta fosse uma língua estrangeira para mim mesmo. Sinistro. Ao menos é o que pensa o Marcos, que largou a vida nos nossos pagos gaúchos para construir sua vida aqui em Maputo. Talvez eu faça o mesmo. O perfume das mangueiras, as cores das marulas a cobrir o chão, e os sabores do gengibre e do balakate fazem com que eu fique tentado a criar raízes nesta terra.

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O calor é insuportável (ontem ficou em torno dos 42 graus, e isso que estava “fresquinho e com brisa”, de acordo com Bernardo, o rapaz da recepção do hotel). O Emanuel, meu novo amigo, que teve a gentileza de me acompanhar do aeroporto até o hotel, e vêm me guiando em meus primeiros passos nesta cidade, vem me dizendo que Moçambique não é exatamente o melhor lugar do mundo para se tentar parar de fumar ou beber... mas estou firme em minha resolução. Até porque a necessidade de me deslocar até South Africa para comprar cigarros americanos (nada de Carlton, no máximo Marlboro Light) me deixa cansado, e o calor desta terra amolece até meu vício por nicotina.

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O fluir do tempo nesta terra tem outro ritmo, lento e espiralado como os curtos vôos cós corvos no alto das árvores em torno do hotel. Pastoso, denso, um tanto turvo e bastante inebriante, como um gigantesco copo de Amarula com gelo a descer pela minha garganta sem sede. Ontem andei de chapa, mas não me encorajo andar sozinho em um deles de novo, ao menos por enquanto. Os chapas são como aquelas vans ilegais de São Paulo, só que caindo aos pedaços, e entupidas de gente, com uns sentados no colo dos outros. Assustador. Pitoresco. Óbvio que me diverti horrores, mas só é seguro andar neles sabendo falar um pouco de dialeto ou conhecendo muito bem a cidade. Aliás, o português aqui praticamente uma língua estrangeira. Língua de branco. Língua de rico. Língua de estrangeiro. Vale lembrar que mesmo aqui na Província da Maputo, apenas uns 40% da população o falam como sua língua nativa.

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Mas nem tudo é desgraça! Muito diamante brilha entre os cascalhos do caminho das pedras. O café com gengibre servido na Estufa – uma cafeteria próxima daqui, a meio caminho, próxima da Sede da FRELIMO e quase de frente para o hotel é – algo divino! Passei a tarde com o aroma levemente oriental do gengibre a temperar meu hálito. Os pastéis de nata (que no Brasil chamamos de “pasteizinhos de Belém”) são deliciosos e muito baratos: MZM 20 (vinte meticais), algo em torno de dois reais e alguns centavos. O salário médio de um trabalhador braçal em Moçambique é um pouco menos do que o preço da diária que estou pagando aqui neste hotel: MZM 1.700 (cerca de 65 dólares estadunidenses). Os preços também variam muito de acordo com o bairro da cidade: um refresco aqui no hotel, localizado em Sommerschield, pode chegar a MZM 40, enquanto nas zonas populares da cidade, mais ao norte, chega a ser vendido a MZM 8. No Mercado Central, o mais antigo do país, e que lembra um pouco o Mercado Público de Porto Alegre, é possível tomar uma cerveja long neck por MZM 10.

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Uma brasileira da UNICEF está hospedada aqui do meu lado. Ainda não consegui conversar com ela, mas ela me parece simpática. Ela acabou de sair para o pequeno almoço. Vou tentar alcançá-la,e ver se descubro mais alguma coisa sobre ela. Tenho de montar uma substanciosa “rede de apoio”, como diria Fernando Seffner, se quiser sobreviver aos meus surtos semi-depressivos enquanto estiver morando em África.

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Um grande beijo, cheio de saudades a todas vocês. O pânico inicial dissipa-se aos poucos. E esta terra, um tanto inóspita, parece-me o lugar ideal para eu começar a escrever, projeto que venho adiando desde o meu ingresso no Curso de Letras, por mais paradoxal que possa parecer. Ainda esta semana quero ver se consigo ir até a Associação dos Escritores de Moçambique. Meu novo projeto, além de registrar por escrito todas as minhas impressões desta/nesta terra árida e vermelha é o de escrever um volume de ensaios sobre o romance contemporâneo de Moçambique. Acabo que comprar Venenos de Deus, Remédios do Diabo, de Mia Couto. Tão delicioso como o chá gelado de balakate. Quero resenhar e ver se consigo publicar alguma coisa sobre ele antes de março, no Brasil.

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Um grande beijo a todas,

Anselmo.

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P.S.: E o corvo continua grasnando (corvo grasna?). Não estou certo, mas é uma heresia chamar este ruído de canto. Ah! Saudades dos sabiás e dos tico-ticos!


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